Exposições
Devastação | Paula Huven
Sobre o autor
Paula Huven nasceu em 1982, em Belo Horizonte (MG) onde vive atualmente. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com formação livre pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage RJ. Atualmente doutoranda pela Escola de Belas Artes da UFMG. Realizou as exposições individuais “Dias Comuns” no Festival Foto em Pauta (Tiradentes, 2017); “Devastação” na A.M. Galeria (Belo Horizonte, 2014) e “o que nos une, o que nos separa”, na Galeria Ibeu, integrando o circuito FOTORIO 2013. Recebeu o Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais (2013) e foi finalista nos prêmios Pierre Verger (2017); Conrad Wessel (2015); Photovisa Russia (2015) e Diário Contemporâneo (2013)
Texto crítico
Os olhos, o espelho, o outro
1.
A noite chegara há pouco. Sentamo-nos, lado a lado, nas duas cadeiras diante do espelho falso. Sobre os nossos corpos, a intensa luminosidade do aparato fotográfico, enquanto o leve ruído do disparador cortava os instantes. Nossos olhos, entre as tentativas de escape, encontravam-se, vez ou outra, na distância da imagem no espelho. Fugíamos; voltávamos. Perdemo-nos, por fim. Ainda que nos olhássemos, já não nos víamos. Restitui-se, de repente, o fio mais primitivo que vincula os nossos corpos: o que é meu, o que é dela? Restou somente o olhar: já sem corpo, quase sem visão, o olhar fixo no outro, este que se mistura a mim, que não se separa, que me tira o ar, imagem colada à minha, o meu autorretrato do outro.
2.
A primeira imagem com a qual estabelecemos relação talvez seja a nossa própria imagem. Lacan falaria mesmo de uma experiência com o espelho, em que a criança compreende, diante do próprio reflexo, que seu corpo é um outro. Se, naquele momento, ela se dá conta de que existem ao menos dois corpos, o seu próprio e o da mãe, ela constata não somente a alteridade da mãe mas, também, a sua própria alteridade em relação ao pensamento original de ser um único corpo com ela. Tendo olhado para seu corpo no espelho, a criança se vê como um outro. A mãe também a olha e lança ao seu pequeno corpo a confirmação de estar separado. Neste instante, instaura-se uma nova ordem de relação com o mundo, com o olhar e com as imagens. A imagem do outro – a minha imagem no espelho – é a minha origem como sujeito, apartado do outro, separado da mãe.
3.
Freud falaria de uma catástrofe. Lacan, de uma devastação. A relação entre essas duas mulheres, mãe e filha, constitui-se por restos sem palavra, resíduos de uma pré-história perdida, sem memória, sem linguagem possível. Segundo Freud, a mãe é o primeiro objeto de amor do menino e da menina. Mas a menina precisa fazer um movimento inverso e difícil: deixar este primeiro objeto amoroso para ir em direção ao pai. Na mãe, falta; o pai é a promessa da restituição do que foi perdido. Nesse rasgo, mãe e menina se perdem no duplo vazio que as constitui. A menina investe, então, em uma primeira separação que deverá ser afirmada ao longo da relação com a mãe. Uma paisagem devastada vincula as duas: o feminino como o campo de uma falta, de um enigma, o que Freud chamou de continente negro. A menina espera aprender o feminino com a mãe, mãe que, por sua vez, não sabe, não pode ensiná-lo. A relação se investe, então, de jogos de amor e ódio, de decepções e frustrações; uma não pode reinvestir a outra do que falta, do que definitivamente faltará. A história da menina com a mãe transforma-se na história de uma separação necessária, mas sempre adiada; os corpos se misturam, não se sabe o que pertence a quem na relação. Para a menina se tornar mulher, ela precisa separar-se deste outro primordial. Para poder ir em direção ao desejo é preciso deixar de responder à demanda infinita do outro materno. Mas os vínculos são obscuros, intangíveis. A paisagem torna-se ruína, deserto. Para Lacan, a devastação é a difícil trama de uma demanda infinita de amor que impossibilita a filha de se separar da mãe para constituir-se como mulher.
4.
Na série Devastação, de Paula Huven, o que vemos de imediato é um encontro. Encontro entre mãe e filha, sim, mas um encontro que envolve, ainda, um outro: a fotografia. Na proposta do trabalho, mãe e filha sentam-se diante de um espelho falso, através do qual está a câmera. O tempo que se segue, de uma duração variável, destina-se a uma constituição do olhar das duas, enquanto a artista, atrás do espelho e sem ser vista, procura-o, estabelecendo, por sua vez, uma outra relação com a cena, de captura e silêncio. Digo constituição do olhar porque ele não é algo dado, pronto, imediato. Ele se desenha no tempo em que os olhos se olham, se enfrentam, se acalmam. O olhar acontece, às vezes muito brevemente, num mínimo relance. O olhar não dura, ele é frágil, pode desaparecer com um sorriso, uma risada, a cabeça para baixo, para o lado, os olhos fechados. Quando nos propomos a olhar os olhos do outro, sem nada dizer, sem gesticular, impedindo que qualquer outra linguagem apareça além do olhar, sentimo-nos imediatamente estranhos, muitas vezes rimos, tentando afastar a invasão do olhar do outro. Somos, em geral, protegidos do olhar pelas palavras e pelos gestos, pelo que sempre nos chama em outra direção. Olhar o outro – e, principalmente, se deixar ser olhado – é um exercício perturbador. Aqui não se trata de um olhar direto, mas de um olhar enviesado: mãe e filha estão lado a lado, olham-se uma para a outra através do espelho. Mas o que poderia ser menos inquietante, porque aparentemente distante, beira o insuportável: como estar diante de um espelho e olhar o outro, se o espelho é o artifício que devolve a minha própria imagem? Diante de um espelho, olhamo-nos a nós mesmos; o outro não precisa de um espelho para ser olhado por nós. O que acontece, então, quando eu olho para o espelho e o que lá encontro é a imagem do outro? Essa inversão desestabiliza de imediato uma ordem da relação: misturamo-nos nos olhos e nas imagens, somos extraviados do nosso próprio corpo, tecidos no corpo do outro. O rosto da mãe, o rosto da filha, instâncias de uma intimidade avassaladora, tornam-se, também, de uma estrangeiridade absoluta. Aquele rosto do outro, que é um pouco meu porque reside em meu olhar, investe o meu próprio rosto de seus traços, perco-me no outro, não me separo, aninho-me no inapreensível de sua imagem. Se o espelho um dia trouxe a confirmação de nossa diferença, hoje ele restitui o rasgo, transformando parte de um corpo no outro. O olhar que um dia separou hoje gera o encontro, para que, talvez, possamos novamente nos separar. Mas a fotografia – ela, este outro – não permitirá mais a separação: para sempre, nela, o fio invisível que nos liga, que nos torna feitas de um só corpo, na trama dos olhos enviesados, dos olhos fechados, da carne misturada, da pele à distância, do riso, da dor – para sempre a imagem será a dupla construção do vínculo e da perda.
Carolina Junqueira dos Santos