Exposições
États des Lieux – Estado dos Lugares | Samuel de Jésus
Sobre o autor
Samuel de Jésus : Mestre em Artes Plásticas pela Universidade de Paris I-Panthéon Sorbonne e doutorando em co-tutela na Universidade de Paris III-Sorbonne Nouvelle e na Universidade Fereral do Rio de Janeiro, sob orientação de Philippe Dubois e Consuelo Lins. Sua pesquisa envolve questões ligadas à temática da saudade e suas representações nas fotografias francesa e brasileira contemporêanas desde 1960, sob o ponto-de-vista da estética da imagem. Fotógrafo e antigo estudante de artes plásticas na França e em Nova York, realizou exposições de suas obras em Paris (Galerie des Beaux-Arts), Marselha, Brest (La Passerelle), Rennes (La Criée) e Tours (Centro Regional da Arte Dramática).
Trabalhou na pesquisa e montagem de exposições na França sobre Roman Opalka (1992) Tadashi kawamata (1996), Pierre Joseph (1998) e da fotógrafa Chrystèle Lerisse (Galerie Baudoin Lebon, 2006) e também participou na realização do catálogo que acompanhou a retrospectiva Agnès Varda – o movimento perpétuo do olhar (2006) no Centro Cultural Banco do Brasil.
Texto crítico
Na origem deste projeto em forma de tríptico, um trabalho focalizado sobre a memória e uma interrogação evidente sobre a fotografia contemporânea na sua dupla vocação, ou seja, compartilhada entre sua dimensão documentária e seu propósito artístico.
No corte sistemático de uma totalidade urbana, na segmentação visual utilizada como processo de amostragem, ou mesmo na coleção de retratos, adivinhamos simultaneamente uma vontade de não perder nada, de indexarmos ainda o que pode sê-lo, mas também o desejo de conceder uma autonomia às imagens, de deixá-las contar-se a si mesmas.
Os títulos evocam um canteiro, ou mesmo uma escavação arqueológica: um território a demarcar e a esquadrinhar, com elementos a classificar, objetos rituais dos quais buscamos descobrir os segredos; identificar e entender, ordenar e contar.
Respectivamente intituladas Sítio, Inventário e Fetiches, estas três investigações fotográficas de Samuel de Jésus convocam, a cada vez, o escrito e funcionam em perspectiva: do bairro ao indivíduo, da memória coletiva à memória individual.
Sítio
Se a postura deriva de uma inspiração de inventário (acumular instantâneos para dar conta de uma paisagem destinada a ser destruída), isso não provém de um trabalho de arquivo tipicamente documentário, mas ao contrário de uma coleta que desemboca num mosaico sensível. Ou como um espaço “neutro” – padronizado como só sabe ser uma unidade de conjunto habitacional – pode carregar-se de múltiplos sentidos.
De fato, o desaparecimento de um prédio imponente, já que ele modifica a forma da cidade e a vida dos que nele viveram, aparece somente como uma ferida urbana. A preparação da obra de destruição cristaliza completamente o tempo presente: este momento furtivo onde a consciência percebe que o que é não será mais.
Esta ambição de cercar os limites de um bairro em torno de um coração arbitrário (um prédio destinado a desaparecer) acaba por reinventar os passos de seus moradores, revivendo seu próprio envolvimento físico no espaço ao redor. Esta tentativa de traduzir, com apoio das imagens, o que foi a freqüentação assídua das ruas e dos comércios desdobra-se na descrição deste movimento de apropriação legítima que faz com que um bairro seja o nosso bairro.
A poética da errância, da qual a serie Sítio escontra-se impregnada, desvia a própria técnica fotográfica. Voluntariamente muito contrastada nos valores, ela privilegia as cores surdas, escuras e difusas, imprimindo assim na imagem a marca dos movimentos de um flâneur nostálgico. Uma postura que permite reintroduzir, tanto física quanto mentalmente, o signo da errância, da incerteza com o futuro. Tratando também da ambigüidade de nossa relação com a paisagem, baseada na evidência segundo a qual, ao mesmo tempo em que construímos, destruímos.
Inventário
A passagem para esta segunda série opera-se com a mesma suavidade que a de uma deambulação que nos faria deixar o exterior mais ou menos imediato do prédio, fazendo surgir os detalhes que caracterizam os apartamentos individuais, necessariamente marcados por presenças singulares.
A questão da ausência torna-se ainda mais poderosa, já que os signos de deserção tornam-se óbvios nos apartamentos. As fotografias demoram-se aí sobre as superfícies e no meio dos resíduos materiais, revelando o que eles convocam em termo de memória.
A escolha do preto e branco, para este conjunto de imagens, serve para chamar a atenção aos materiais, as nuances de cinza tornando-se, de certo modo, o eco abafado das vidas que aí se abrigavam.
Na delicadeza dos instantâneos que procuram restituir a espessura do ar, carregado de pó, lê-se a porosidade das paredes que já se decompõem sob o efeito de sua destruição anunciada.
A porosidade é igualmente aquela dos motivos incorporados no chão e nas divisórias que parecem murmurar suas histórias. A marca, aqui, funciona como um indício ficcional e se inscreve na cavidade, por falta. O detalhe se faz elemento de vida, como este furo, ou este parafuso que permanece embutido no gesso e pode ser visto como a própria encarnação do quadro que fora aí suspendido.
Os textos – produzidos nas oficinas de redação, abertos aos antigos moradores do conjunto habitacional – acompanham as fotos e insuflam-nas de um gosto e um cheiro que a imagem furta-se a restituir. Eles oferecem um percurso sensível que, neste instante, permite recolorir os apartamentos desertados.
Fetiches
A reintrodução do corpo nesta última série sistematiza um deslocamento do assunto, mas também do quadro. Isto é uma galeria de retratos sem rostos, o sujeito fotografado não apresentando mais aqui que suas mãos segurando um objeto pessoal, fora de qualquer contexto reconhecível.
Dez fotografias: tantas pessoas a desvendar uma história interna ligada a um objeto fetiche, quanto textos formando a verdadeira iluminação do conjunto. O “desenquadramento” voluntário, excluindo o rosto em beneficio do objeto dotado de uma potente carga emocional, confere a esta série um pudor particular. Além do caráter anedótico deste objeto-fetiche ou talismã, entrevê-se nestas imagens a força de objetos receptáculos que funcionam como “reativadores” de memória.
Valerie Nam, autora e crítica de arte francesa